Batata: diálogo é luta e dança

david f. mendes
3 min readSep 18, 2020

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A segunda cena de “O Beijo no Asfalto” se passa na casa de Selminha. O pai dela, Aprígio, apareceu de surpresa, apressado, um taxi na porta esperando. Ele quer contar alguma coisa à filha.

Mas Selminha não está preocupada com o que Aprígio quer lhe contar. Ela está preocupada, num afã de dona de casa, em servir algo ao pai. “Mas o senhor janta com a gente.” Não, ele tem pressa.

Aprígio entra, em parte, com o assunto, que é o conflito central da peça, mas não impressiona a filha, que, depois de ver recusado o seu ensopadinho de abóbora consegue enfim que o pai aceite um café. “Um cafezinho eu aceito. Café, topo”.

A cena se estrutura em dois eixos. Aprígio tentando contar que o marido de Selminha ficou na delegacia prestando depoimento depois de ter beijado um atropelado na rua, e a filha tentando servir um café ao pai e lidando com problemas como a resistência dele e a falta de pó.

São duas “tramas” dentro da cena, e uma não é menos importante que a outra, e aí já vai uma lição importante.

O que Aprígio tem a dizer é difícil de dizer. Ele mesmo não entende bem o que sente a respeito. A maioria dos roteiristas, quando o personagem está numa situação assim, faz duas coisas: o personagem verbaliza a sua confusão (“não sei o que pensar…”, “estou confuso”) e os outros personagens na cena de cara dão importância à situação.

O que acontece quando a gente não sabe o que dizer? A gente fala coisas pela metade, a gente contorna o assunto, a gente faz silêncio. Ao incluir a “trama” de Selminha tentando servir o café, Nelson Rodrigues dá oportunidade a que as vacilações naturais de Aprígio aconteçam sem derrubar o ritmo da peça. O nome disso é desenho de cena, e há ainda outros aspectos dessa questão que merecem análise na cena.

Ao mesmo tempo, essa dinâmica “o que Aprígio tenta contar” versus “Selminha e o café” torna a cena muito mais real. Porque soa cotidiano. Porque soa íntimo. Porque Selminha (e Dália, a outra filha que também está na cena) não sabe que o que o pai quer dizer é tão importante. Ela não sabe que está numa peça chamada O Beijo no Asfalto! Parece óbvio, mas, na prática, os roteiristas muitas vezes fazem os personagens pensarem, agirem e falarem como se soubessem em que filme estão.

Há ainda uma terceira “trama” na cena, tornando o seu desenho ainda mais rico, a que diz respeito a Dália, a irmã, e seus sentimentos por Arandir, o cunhado. Com essa dança entre três eixos, a cena jamais deixa de ser viva, dinâmica.

O diálogo é todo conflito, é uma dança e ao mesmo tempo é uma luta, sem que haja, na maior parte do tempo, grandes desacordos entre os personagens. Esta é outra, mais uma, grande lição da cena: conflito não precisa ser oposição, rivalidade ou inimizade, conflito pode ser algo tão simples quanto servir um café a alguém que tem pressa.

Na Masterclass “O Diálogo no Roteiro”, que vou dar em outubro, analiso essa cena em profundidade. É um dos meus maiores prazeres, como professor de roteiro, apresentar uma cena bem escrita e destrinchá-la, mostrar o seu mecanismo funcionando, mostrar a beleza da sua construção. E esta, que nem sequer é a melhor cena da peça, é uma lição pra vida de qualquer um que escreva dramaturgia.

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david f. mendes

Autor-roteirista, showrunner, professor de roteiro, escritor. Nós, A Garota da Moto, Corações Sujos, Um Romance de Geração, O Herói Insone.