O Melhor Diálogo é Incompleto

david f. mendes
3 min readSep 11, 2020

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Estou num bar, na Alemanha, a mesa está bamba, preciso pedir um calço ao garçom, mas não falo alemão e ele fala pouco inglês. Fico meio ensaiando como dizer aquilo de um jeito que ele entenda. Formo frases completas na cabeça, explicando que a mesa está desnivelada e que é preciso por algo sob o pé para que ela se equilibre.

Mas quando o garçom chega, a cena se desenrola mais ou menos assim:

EXT. BAR — NOITE
David vê o garçom e acena para chamá-lo. Mal o garçom se aproxima, David segura a mesa com as duas mãos e…

DAVID
(balança a mesa)
This is…

GARÇOM
(tira alguma coisa do bolso)
Oh, ok…

O garçom tira do bolso uma pequena pilha de porta-copos e se abaixa para encaixar alguns sob um pé da mesa. Ele pega a mesa do mesmo jeito que David a havia balançado antes, mas desta vez ela está firme.

DAVID
Perfect!

O garçom se afasta para atender outras pessoas enquanto David ainda verifica mais uma vez se a mesa está firme. E está.

A maioria dos roteiristas esquece que o diálogo se dá, ou deveria se dar, em conjunção com as ações dos personagens, o espaço onde a cena se desenrola, os objetos presentes, outros ruídos… Escrevem como se a compreensão das coisas só fosse possível se o conteúdo que se deseja comunicar estiver todo verbalizado, com sujeito, verbo e predicado.

O resultado disso é o tédio. Cenas mais lentas do que o necessário, atores sem ações para executar, diretores sem nada interessante para filmar.

Por que o garçom entende uma fala que nem chega a ser uma frase completa como “this is…”? Pelo contexto. O gesto que eu fiz de balançar a mesa somado ao “this is…” significa que a mesa está bamba e que eu estou pedindo a ele para dar um jeito nisso.

Canso de ler roteiros com cenas em que o personagem está com um objeto na mão para entregar a um outro, por exemplo, e ele fala o nome do objeto. O personagem diz “Segura essa corda” em vez de passar a corda para a mão do outro e dizer apenas “Segura”. Ou a personagem dá alguma coisa a uma outra e diz “trouxe esse sanduíche pra você” em vez de simplesmente entregar o sanduíche e dizer “pra você”.

Estou deliberadamente abordando a questão em termos apenas de situações muito simples dramaticamente, porque fica mais fácil entender, mas a mesma ideia se aplica a qualquer cena, inclusive as mais importantes. O clímax de um roteiro pode ser estragado pela incompreensão do roteirista da dinâmica diálogo/ação/espaço.

Dica prática: ao escrever uma cena e seu diálogo, visualize o melhor possível o que está acontecendo. Visualize de forma muito concreta. E se tudo que lhe vier à cabeça forem personagens falando no vazio, sem relação com coisas ou com o espaço, a cena não vai funcionar. Encontre essas coisas e esse espaço, faça os personagens funcionarem ali e “puxe” o diálogo da própria situação.

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david f. mendes

Autor-roteirista, showrunner, professor de roteiro, escritor. Nós, A Garota da Moto, Corações Sujos, Um Romance de Geração, O Herói Insone.