Quando a estrutura é ótima, mas o roteiro não presta

david f. mendes
2 min readJul 23, 2019

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Ontem li um roteiro bastante ruim, e ele era perfeitamente estruturado. Como isso é possível? Uma pista: o problema está nas cenas.

Um roteiro bem estruturado pode ser ruim? Pode ser muito ruim, e não estou falando hipoteticamente. Leio muitos roteiros, de alunos e de projetos que me enviam, e esse fenômeno de péssimos roteiros que, no entanto, têm todos os beats no lugar certo e as tramas A, B e C perfeitamente urdidas, é uma tendência cada vez mais comum.

O filme (ou o episódio) acontece na cena. A cena é a verdadeira unidade dramática do roteiro. É a cena que o espectador assiste e é nela que ele se engaja. Ou não.

É a cena que o ator atua e o diretor dirige e a produção produz. É o encadeamento de uma cena na outra o que efetivamente conduz a narrativa, minuto a minuto. É a cena que seduz.

Como eram as cenas no roteiro ruim, mas bem estruturado, que eu li ontem? Eram óbvias. Tudo que acontecia na cena, linha a linha, era previsível, lento, falso e sem brilho.

O roteirista não fazia a menor ideia de que uma boa cena é um filme em miniatura, com seu setup, suas reversões de expectativa e seu clímax.

Os personagens, nas cenas, funcionavam como fantoches ilustrativos das necessidades da trama, sem contradições internas ou externas, sem jamais surpreender. E os diálogos… não vou nem entrar no tema dos diálogos (hoje).

Uma cena precisa ser pensada, ter um desenho, que é muito mais que a sua função estrutural. Cenas ruins entregam personagens ruins, falsos, com os quais ninguém se engaja. E sem engajamento com os personagens, não há trama que funcione. A estrutura não salva. Ela nem sequer se faz presente se as cenas não são capazes de capturar o espectador.

Há muitos anos, uma ênfase exagerada tem sido dada a uma certa visão mecanicista da estrutura narrativa. Apresentadas numa ciranda de conceitos em livros e cursos, expostas em gráficos mais e mais complexos, as técnicas de estrutura de roteiro cada vez têm menos relação com a efetiva prática da roteirização.

Esse exagero leva muita gente a achar que ser um bom roteirista significa plotar linhas num gráfico. E até é isso também. Mas, acima de tudo, é preciso (desculpem atestar o óbvio) escrever.

A estrutura não é o único aspecto técnico do roteiro. Também existem técnicas para escrever. Técnicas de “design” de cena, técnicas de diálogos etc. A diferença é que elas não cabem em gráficos e exigem prática, muita prática.

Só se aprende a escrever escrevendo. E reescrevendo. E escrevendo. E reescrevendo. De novo e de novo.

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david f. mendes

Autor-roteirista, showrunner, professor de roteiro, escritor. Nós, A Garota da Moto, Corações Sujos, Um Romance de Geração, O Herói Insone.