Sobre "Nós"

david f. mendes
3 min readSep 14, 2020

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Fábia Mirassos e Fernando Eiras em "Nós", série de David França Mendes e Rodrigo Ferrari

Como é que dois roteiristas homens, cisgêneros, criam uma série radicalmente trans? Em “Nós”, a série que criei com Rodrigo Ferrari e que estreou em agosto passado no Canal Brasil, todos os protagonistas ou são trans ou estão em processo de transição, assim como alguns dos coadjuvantes. E, para nossa alegria, muitas mulheres e homens trans têm se identificado com nossas personagens. Como isso foi possível?

Essa história começou em 2012, quando Rodrigo e eu criamos a série. De lá para cá, muita luta para não deixar o projeto morrer. E ele quase morreu muitas vezes. Ao mesmo tempo em que se fazia de tudo para o projeto seguir em frente, os roteiros iam sendo escritos, re-escritos, transformados. Mas antes dos roteiros, o primeiro passo é sempre a pesquisa. Conversas, entrevistas, leituras, ir a lugares.

Eu sempre entendi escrever como um gesto em direção ao outro. Todo personagem que eu escrevi na vida foi um tentativa de me colocar no lugar de alguém que radicalmente não sou eu. Japoneses e japonesas do pós-guerra (Corações Sujos), motogirls e motoboys paulistanos (A Garota da Moto), por exemplo. Para mim, esta é a beleza da dramaturgia: corajosamente transformar-se em outra pessoa através das palavras, correndo o risco de errar.

Para escrever essa série, conhecemos pessoas, lemos autores e autoras trans, assistimos documentários, escutamos muitas vozes. Um caminho rumo à empatia, que é o mais importante de tudo. O diferente deixa de ser diferente, é alguém como eu. E o que eu quero é que o espectador sinta a mesma coisa: “essa personagem é alguém como eu”.

A pesquisa não basta, é preciso dar o passo seguinte, que é conceber personagens que não se reduzam a um aspecto só. Pensar numa pessoa trans e focar na pessoa, mais que no fato dela ser trans, sem esquecer que ela é trans.

Lúcia, uma das protagonistas, é uma mulher trans. É também advogada. É alguém que lutou pela estabilidade que tem na vida. É também esposa, e esposa que se sente traída. Quem nunca viveu um relacionamento em crise? Quem nunca viu a maré da vida virar de repente?

Manu é trans. É também uma jovem que gostaria de ter um namorado. Ela busca intimidade com alguém. Isso é difícil para uma menina trans, mas será que é fácil pra alguém? Manu é também uma gênia da matemática que sofre abuso do seu orientador de pós-graduação. Quantas mulheres inteligentes já não passaram por isso?

A origem do preconceito é a ignorância e a recusa da humanidade do outro. A identificação através da dramaturgia é uma ferramenta, modesta mas real, contra essa ignorância e essa recusa.

O segredo para criar uma personagem trans não estereotipada é o mesmo para criar qualquer personagem não estereotipado: nunca reduzir o personagem a um aspecto só. O roteirista tem algo de ator, que se coloca no lugar de um outro alguém e faz com que se enxergue ali um ser-humano completo.

Foram muitas e muitas versões dos roteiros, anos de processo num aprofundamento de cada aspecto de cada linha de trama, até que finalmente fosse possível que elenco (Fernando Eiras, Fábia Mirassos, Maria Léo Araruna, Renata Carvalho, entre outros) e direção (Anne Pinheiro Guimarães, diretora-geral, e Gigi Soares) viessem a dar, com muita coragem e dedicação, corpo e voz ao que estava no papel.

Para mim, que escrevi essa série com outros homens e mulheres cis (além de Rodrigo, co-criador, os colaboradores Manuela Cantuária, Cláudio Felício e Clara Meirelles), o grande desafio, aquilo que nos moveu, foi criar personagens trans com a riqueza e complexidade das grandes personagens do cinema e da TV, e que pessoas (trans ou não) reconhecessem, nesses personagens, gente que tem defeitos e qualidades e luta pela vida e pela felicidade. Como todo mundo.

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david f. mendes

Autor-roteirista, showrunner, professor de roteiro, escritor. Nós, A Garota da Moto, Corações Sujos, Um Romance de Geração, O Herói Insone.